"As pessoas gostam mais do por do sol à aurora
porque cultuam muito mais o adeus"
Paulo Tabatinga
Abriu os olhos e encarou o teto. Sabia que já era dia alto e que também era quinta-feira. Passou algum tempo tentando adivinhar a hora certa pela intensidade da luz do sol que a fresta da janela deixava passar. 8:34 talvez. Não, não...8:40...8:41. Isso, 8:41. Tateou o criado-mudo à procura do celular. No caminho, encontrou os óculos. 8:23. Errara, mas estava feliz por ter 18 minutos de vantagem em relação ao seu achismo.
Levantou-se sem ainda ter decidido com qual humor estava de fato. Escutou o telefone fixo do vizinho de baixo berrar e, mais uma vez, alegrou-se. Foi uma decisão acertadíssima não instalar aquele aparelho maldito. Não sabia que som tinha o inferno, mas em algum momento deveriam soar telefones por todos os cantos. Abençoado celular, clemente modo silencioso com alerta vibratório!
Depois de encarar o espelho por longos 6 minutos e meio e não constatar olheiras aparentes, iniciantes ou disfarçadas, resolveu enfim que era dia de sorrisos.
Foram 14 emails, 2 pães, 1 xícara de café e 3 pastilhas de gengibre até sair de casa. Não prestava mais muita atenção ao caminho que os pés sabiam de cor. Ia e ia. Ia mais um pouco e um pouco mais. Então chegava.
Terminal 2.
Aqui chegavam ônibus do país inteiro. Centenas de estudantes, turistas, hippies, migrantes sazonais de todas as texturas e credos partiam e chegavam dioturnamente. Um profusão de janelinhas esfuziantes para partir ou impacientes para chegar.
Sentou-se.
Reparou no rapaz ao lado. Um tipo jovem...jovem adulto, como gostam de apontar. Vá lá, deveria ter seus 32 anos. Trazia os cabelos em desalinho, não soube precisar se intencionalmente ou não. Tinha grossas sobrancelhas e olhos miúdos, apertadinhos, porém sem traços orientais. O nariz era...médio? Não era muito detalhista com o aparelho olfativo das pessoas. Preferiu deter-se no conjunto perfeito que faziam boca e barba. Eram lábios generosos, descontraídos, deveriam ficar bem em um risinho de esquina. Os pelos escuros e espessos lhe davam o tom dos 32 anos. Estava mesmo absorto na leitura do...ah sim! Havia ainda as mãos. Firmes, unhas largas e bem cortadas. Indício de que talvez o cabelo esteja assim propositadamente, pensou. Daí lembrou-se que sentou-se ao seu lado pelo que lia: um volumoso caderno classificados.
"A página 7 é a minha favorita"
Ele pareceu despertar e olhou em volta para identificar o interlocutor. Os miúdos olhos alargaram-se quase imperceptivelmente em agradável surpresa ao encará-la.
"Procura algo em particular? Er...não quero parecer...mas...hm...talvez possa ajudar"
Hesitou e isso era raro.
"Isso é só costume. As coisas que procuro não cabem nesses quadradinhos"
Sorriu e uma onda morna de alívio inundou-a. Por segundos pensou que estivesse enganada a respeito do tipo. Mas acertara. Era como se as suas primeiras impressões estivessem treinadas.
"Indo ou vindo?"
"Indo"
"Volta?"
"Ainda não sei"
"E vai para decidir?"
"Talvez"
"Ir implica procurar o que não cabe aí?"
"Ir implica não saber se vou achar"
"E ficar também não..."
"Ficar certamente não..."
"Qual a categoria do que procura?"
"Diversos"
"Diversos é vasto"
"Diversos é muito"
"Ou muito pouco"
"É muito, senhorita"
Pareceu uma vida. E foi. Em 53 minutos, partilharam, debateram e divagaram sobre todas as seções. Imóveis, empregos, veículos, orações, utilidade pública, pessoais e recados. Cumplicidade que não se acha em qualquer banco, em qualquer anúncio.
"Então, é um até logo"
"Até. E boa sorte com a procura"
Ele agradeceu e deu as costas com a mochila sobre o ombro direito. Só então lembrou-se.
"Ei, e você? Indo ou vindo?"
"Ficando. Eu sempre fico"
Deu um largo sorriso ao tipo e deixou o terminal 2.
Não sabia desde quando fazia aquilo. Visitava a rodoviária todos os dias para fazer amigos de curto prazo. Amores eram ocasionais. Elegia alguém, depois de uma longa observação, para uma conversa. Era sempre correspondida porque as pessoas são carentes. Parecem muito bem resolvidas, mas sentem-se tão mais amadas quando lhes dirigem a palavra. Fora a primeira vez que o diálogo tinha sido pautado por classificados. Espera, café, bagagem, (má) educação, táxi, turismo, papel de bala, telefones públicos. Cada tema um amigo ou dois ou.
A verdade é que era viciada em despedidas. Não assumia porque "ai, odeio despedidas" era o novo "sou a favor da democracia". Mas dizer tchau/até logo/até mais/a gente se vê lhe produzia um efeito tão deliciosamente tóxico. Os poros ficavam cheios de uma excitação latente. Era prazeroso não saber se veria aqueles amigos alguma outra vez. Ela achava.
A amizade mais longa? 3 horas. Uma senhora amável com ares de avó perdera o ônibus para Belo Horizonte. Ia conhecer o noivo da filha mais nova. 180 minutos que começaram com a capa da revista de bordados.
"Ponto-cruz vai ser sempre o carro-chefe, hein?"
"Se bem que já foram mais elaborados...digo isso pelo que via antes. Tenho orgulho de dizer que aprendi sozinha"
***
Abriu os olhos e encarou o teto. 8:54. Óculos. Espelho. Vizinho. Café. Caminho. Terminal 2. Olhos treinados. Sorriso.
"Indo ou vindo?"