Deixou portas e braços abertos.
Impaciente demais para caminhar, corri.
Sorrir, não conseguia. Era tanta ânsia, tanto querer, tanta vontade dele.
Meus passos largos engoliam a distância.
Então, já bem próxima dele, a cena mudou.
Foi fechando, portas e braços. Não me sobrou janela nem fresta.
Pensei em gritar, espernear, forçá-lo a abrir. Não tive coragem.
Queria fechar-me a ele também e quase consegui.
Um dia, com sucesso, vedarei todos os vãozinhos e não o deixarei passar para dentro de mim.
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Eu abro minhas correspondências ao sair de casa. Noticias que vêm de fora, eu levo para fora de novo. Ou para dentro (da bolsa). Os vizinhos olham com aquela estranheza. “Alá a fulaninha da 1552...arrogante...”. Não digo que não dou ouvidos a essa gente porque sim, sempre escuto o que eles falam, não que eu me importe. Ah, vá lá...eu nem gosto mesmo dos meus pés. Eles são assim disformes, meio achatados e o dedo mindinho é torto.

Conheço o texto de uma peça que diz que o whisky é a melhor solução para desfaçatez. Se eu gostasse, talvez concordasse com o autor, mas, para mim, a melhor invenção até hoje são os óculos escuros. Nada mais adequado para reparar nos outros discretamente. Quem imaginaria que há olhos crispados de curiosidade atrás de lentes negras tão blasé?

Malditos motoristas...e esses pedestres fora de órbita então? Não sabem o que é ser atropelada por uma Brasília ano 79. E daí que ela estava a 30km/h? Tinha 7 anos e foi a primeira vez que xinguei na vida. Em tom audível e na frente da minha avó, que fique claro. Despejei a minha metralhadora de palavrões em cima do aflito motorista. Acho que estava mais irritada pela vergonha de ter trocentrilhões de vizinhos assistindo à minha avó me dar banho para lavar as raladuras. Que gente...Abrir os ouvidos por trás dos óculos escuros vá lá, mas invadir banheiros já ultrapassa o código de ética da vida alheia.

Para os diabos com essa pergunta. Quem sou eu? Ora quem sou eu. Vai saber...Você sabe quem é você? Não vale dizer o nome. O mundo tem sim gente com nome e sobrenome repetido e, pasme, elas são pessoas diferentes. Ser é tão definitivo que, na era das incertezas, acho que mais estou do que sou. Claro. Ser mulher é muito relativo. Uns hormôniozinhos aqui, umas cirurgias ali. Pronto. Posso começar a ser definida pelo artigo definido “o” ou pelo o indefinido “um”.

Sabia que meu nariz já incomodou mais? Minha mãe o apertava quando eu era menor para afilar. Não sei onde ela aprendeu isso, mas agora deve saber que tem traços étnicos que não são desfeitos com uns anos de apertões ou apertinhos. Ainda tenho a mesma cara de tampinha-de-fanta-laranja-amassada.

Minha maior frustração é não saber assobiar. Já tentei trabalhar a respiração, fazer com as mãos, prender o ar lá no céu da boca e nada. Revirar a pálpebra dos olhos também nunca consegui...Diziam que se você estivesse fazendo quando o galo cantasse, ia ficar assim para sempre. Nunca ouvi falar de um caso real. Os mais velhos tem uma imaginação...dizendo eles que tem tudo na Bíblia ou que alguém ainda mais vivido falou. Quanto tempo será que tem que se viver para entender os efeitos do canto do galo na alteração da realidade vigente?

Abro minhas correspondências a caminho da parada de ônibus para ver se os juros tornam-se mais justificáveis enquanto caminho.
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Na infância, encarregaram-se de me ensinar a ler a morte nas orelhas. Empiricamente falando, os que a trouxessem em menor tamanho...que má sorte! Viveriam assim pouquinho...

Quão aterrorizada fiquei no dia em que me dei conta das pequeninas que eu tinha. E os adultos riam-se muito do meu desespero em deixar essa vida tão cedo sem sequer ter casado...O moço loiro de suéter branco não viera ainda. Devia esperar a próxima chuva para ver se aparecia. Treinava todos os dias a cara de surpresa para quando ele à porta batesse e apenas sorrisse. Sem dizer nada, me levaria no colo por entre as grossas gotas que não lhe baguçavam o cabelo.

Aflingiu-me saber que, se o moço não viesse logo, sequer nos conheceríamos. As orelhas poderiam acabar antes que os relâmpagos cortassem por aí e o ar ganhasse aquele cheiro molhado. Abria bem as narinas, analisava cada centímetro de céu...mas nada...nem chuvisco. Sabia que ele não viria então.

Busquei já me consolar que deveriam haver outras orelhas menores e que não partiria sozinha. Analisava a de uma mulher grisalha de aspecto cansado no ônibus quando me ocorreu: o moço era um moço, e tal como os outros, deveria ter orelhas, mas não sabia nada delas. E se o tempo tivesse terminado? Seria possível que elas tivessem chegado ao fim antes mesmo do céu armar-se?

Que desconstrutores são os adultos, eu pensava. Estive bem sem saber ler orelhas, próprias ou alheias. Ainda vivo. Ia dizer que isso é mesmo óbvio, porém depois que se aprende a ver o futuro com o que se devia usar para ouvir, as coisas ficam referencialmente relativas.

Vieram granizos, gotículas, temporais e nada desse moço. Devia ter orelhas bem miúdas ou não tinha nenhuma. Atrasou-se alguns anos porque não pode ouvir a água bater no telhado.
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Virou o mês
e não virei a página.
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