Era o dia mais quente do ano. O sol estalava nas superfícies todas. Caras contraídas no ônibus lotado e gotas de suor confundindo-se meio sem querer, meio bem querendo. No banco do fundo, do lado esquerdo, estava ela que era mais ausência que qualquer outra coisa. Parecia ter acordado no dia errado, daqueles de achar até mesmo as ruas tortas. Entortava-se então ela para endireitar o mundo. Nem dava jeito.

Irritava-a a divertida conversa da mulher ao lado no celular, o boa tarde efusivo da cobradora, a corrida estúpida do motorista para alcançar o sinal ainda verde. Queria que todos ali silenciassem para que ela mesma pudesse se ouvir. Enfureceu-se consigo pelas lágrimas que começou a derramar involuntariamente. Que estupidez! O que as pessoas vão pensar?

Pediu parada e caminhou apressadamente cheia de medo. Das lágrimas, das pessoas, de si. Confundia-se facilmente com a mureta cinza que cortava a avenida. Por ali, todos continuavam com suas vidas ignorando tudo que de torto havia naquela mulher.

Havia para além o mar. Mais vivo que toda a vida que havia nela. Ficaram ali sozinhos, apesar da tarde continuar acontecendo. Ela a tentar endireitar-se. Ele ondeando, ondulando. Tem mar torto ou só morto? Ou tudo que é mar, é mar e pronto? Esperou que ele pelo menos assobiasse. Nem por isso.

Com a mão no bolso do vestido, achou-se na volta pra casa e nunca mais perguntou nada ao mar.

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O dia em que nos conhecemos, eu me lembro bem. Chovia como se a noite há muito precisasse tomar banho. Deixaram a torneira aberta lá em cima e a cidade ficou encharcada. Passei o dia inquieta porque sabia que você chegaria. Desconhecia como viria, a que horas bateria na porta ou se já tinha a chave. Tudo eram corredores e cadeiras de espera. Como se não me bastasse andar em círculos, passei a desenhar oitos nas paredes com a tinta invisível que trazia nos dedos. Passou-me a fome, o sono, o cansaço. Éramos eu e impaciência em um embate quase silencioso. Pareceram-me que anos tinham passado até que veio você deslizando. Todas as minhas expectativas foram superadas. Esqueci que não havia portas. Mesmo que houvesse, estariam abertas para te deixar passar.

Talvez você não recorde que naquele instante tinha se tornado meu maior objeto de curiosidade. Encarei-te com receio por longos minutos enquanto você se mexia desconfortavelmente. Não nos falamos, não nos tocamos. Você sequer parecia saber que eu estava ali. Até que, tremendo, estiquei meus descuidados dedos e você agarrou-se em todos aqueles que conseguiu alcançar. Senti que éramos a nós necessários.

Continuamos sem dizer qualquer coisa por muito, mas descobri nesse dia como nascem os amores e as pessoas.


Para o Lorenzo e por causa dele

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