No último dia 26, conheci a saudade.
Ela que tão distante parecia, tão alheia, queria agora ficar-me por baixo da pele.
Tentei negar-lhe a intimidade. Não sou muito dada à aproximação com estranhos.
Ali mesmo, no aeroporto, dei-lhe as costas. Ordenei que não me seguisse até o ponto de ônibus.
Sentiu-se ultrajada. A perversa cravou-me as unhas no peito e então compreendi porque as trazia tão compridas. Arrastou-me até em casa e colocou-me no colo aquela noite para que chorasse todas as outras em sua companhia que ainda estão por vir.
Digo eu que não sei cantar a saudade, então conto.
Conto todos os cantos e todos os contos de cantos que cantam para a saudade contar. Canta ela, que eu não sei contar cantos. Conto eu que ela não sabe cantar contos. Cantamos e contamos a conta, o canto, o conto.
Digo eu que não sei cantar a saudade, então tanto e ela tonta.
Tudo se fazia tão maior por conta dos pequeninos fatos. O ranger do assoalho e a sutil alegria de saber que estavam os dois acordados.
Dançavam uma valsinha de bom dia enquanto as torradas aprontavam-se a qualquer gosto. Eram risadas frouxas com gosto de margarina de espantar as nuvens que teimavam em cobrir o dia.
Entrelaçados estavam por dentro, bem aqui dentro do lado de fora. Café da manhã e almoço. Lanche da tarde e jantar. Eram-se. Estavam-se. Bastavam-se.
Era o dia mais quente do ano. O sol estalava nas superfícies todas. Caras contraídas no ônibus lotado e gotas de suor confundindo-se meio sem querer, meio bem querendo. No banco do fundo, do lado esquerdo, estava ela que era mais ausência que qualquer outra coisa. Parecia ter acordado no dia errado, daqueles de achar até mesmo as ruas tortas. Entortava-se então ela para endireitar o mundo. Nem dava jeito.
Irritava-a a divertida conversa da mulher ao lado no celular, o boa tarde efusivo da cobradora, a corrida estúpida do motorista para alcançar o sinal ainda verde. Queria que todos ali silenciassem para que ela mesma pudesse se ouvir. Enfureceu-se consigo pelas lágrimas que começou a derramar involuntariamente. Que estupidez! O que as pessoas vão pensar?
Pediu parada e caminhou apressadamente cheia de medo. Das lágrimas, das pessoas, de si. Confundia-se facilmente com a mureta cinza que cortava a avenida. Por ali, todos continuavam com suas vidas ignorando tudo que de torto havia naquela mulher.
Havia para além o mar. Mais vivo que toda a vida que havia nela. Ficaram ali sozinhos, apesar da tarde continuar acontecendo. Ela a tentar endireitar-se. Ele ondeando, ondulando. Tem mar torto ou só morto? Ou tudo que é mar, é mar e pronto? Esperou que ele pelo menos assobiasse. Nem por isso.
Com a mão no bolso do vestido, achou-se na volta pra casa e nunca mais perguntou nada ao mar.
O dia em que nos conhecemos, eu me lembro bem. Chovia como se a noite há muito precisasse tomar banho. Deixaram a torneira aberta lá em cima e a cidade ficou encharcada. Passei o dia inquieta porque sabia que você chegaria. Desconhecia como viria, a que horas bateria na porta ou se já tinha a chave. Tudo eram corredores e cadeiras de espera. Como se não me bastasse andar em círculos, passei a desenhar oitos nas paredes com a tinta invisível que trazia nos dedos. Passou-me a fome, o sono, o cansaço. Éramos eu e impaciência em um embate quase silencioso. Pareceram-me que anos tinham passado até que veio você deslizando. Todas as minhas expectativas foram superadas. Esqueci que não havia portas. Mesmo que houvesse, estariam abertas para te deixar passar.
Talvez você não recorde que naquele instante tinha se tornado meu maior objeto de curiosidade. Encarei-te com receio por longos minutos enquanto você se mexia desconfortavelmente. Não nos falamos, não nos tocamos. Você sequer parecia saber que eu estava ali. Até que, tremendo, estiquei meus descuidados dedos e você agarrou-se em todos aqueles que conseguiu alcançar. Senti que éramos a nós necessários.
Continuamos sem dizer qualquer coisa por muito, mas descobri nesse dia como nascem os amores e as pessoas.
Para o Lorenzo e por causa dele
Saí no último domingo e te deixei a porta aberta.
Já era quase segunda-feira e eu queria mesmo que fosse sábado ou quem sabe sexta.
Há dias em que a vida cabe nas palavras que te posso dizer ao ouvido
E outros em que faltam braços para envolvê-la.
Os minutos estão todos se espreguiçando.
As pessoas arrastam-se nas calçadas como se o céu estivesse pesado demais.
Escrevo-te duas ou três palavras nas linhas da mão esquerda
Para que sempre te lembres que eu lembro
Passaram-se não sei quantos tempos.
Devem até ter construído outras estradas e aberto o mar outras vezes,
Mas ainda tens o cheiro que eu queria sentir agora.
Saí na última segunda-feira e te deixei a porta aberta.
Já era quase sábado e eu queria mesmo que fosse sexta
Ou quem sabe domingo.
Há dias em que nos braços cabem as palavras que posso te dizer ao ouvido
E outros em que faltam vida para envolvê-las.
Começou a chover fino e a chuviscar lembranças dos últimos dias. Resolvera despir-se daquela roupa apertada chamada pele e sair de alma a céu aberto. Não lhe disseram que era perigoso. Esteve assim nas rodas e amou infinitamente outras almas aquela noite. Fez-se toda alegria por dúzias de horas que não saberia contabilizar, por fim.
Porém já era dia. Ali perto varriam as calçadas e cascos de conversas rolavam pelo asfalto iluminado. Assim em luz, todos pareciam bem mais tristes. As roupas de maquiagem borrada, as caras amarrotadas.
Era tão mesmo chuvisco, mas já estava encharcada. Verteu pelos azulejos da área de serviço observando a vida lá fora.
Andava colada à calçada, sem paciência para o meio fio. Naquele meio metro de cimento, vinham velhinhos e todos os seus anos nas costas, estudantes falando da farra do último fim de semana e 5 ou 6 pares de fones de ouvidos. Preferia dividir espaço com carros, motos e bicicletas. Um gosto agreste de egoísmo na boca.
Existem tantas coisas maiores do que a gente. Tantas.
Mas sabe, hoje eu não ligo.
Apetece-me dizer isso e eu nem consigo mais chorar. Estou engasgada com os problemas que não consigo te contar. E você sempre pergunta, você sempre quer saber, você sempre se importa e eu te disse como gosto.
Hoje não vou me preocupar com as palavras bonitas e a poesia e a metáfora. Serviriam apenas de maquiagem, aquela roupa bonita da festa para esconder...sei lá.
Já foram tantas as vezes que, sem motivo, eu fechei-me em mim resistentemente. Encolhi-me no canto, coloquei a cabeça entre os braços e esperei seu consolo. Ele veio. Ele sempre vem porque você é maravilhoso. Por alguma razão, rejeito o que de melhor pode me dar, o que há de mais bonito, o que me há de mais necessário.
É como se você viesse me colocar no colo e perguntar o que há de errado. Eu, rebelde, encolho-me mais, fecho-me mais. Você sai do quarto, fecha a porta e é quando eu fico sozinha sem realmente querer. E tenho vontade de correr, atirar-me a ti sem defesas porque eu não preciso mais delas a não ser pra me proteger de mim.
Peço-te desculpas. Já pedi incontáveis vezes. Não tenho melhor forma de fazê-lo a não ser dizer que sinto muito recusar-te tanto quando eu mais preciso de ti.
Aqui nunca caberão todas as coisas que quero e realmente quero te dizer. Eu disse que hoje eu não sei de nada. A cabeça está tão longe do braço e, como te falei ontem, sempre ficamos do lado que não sabe escrever. Não te peço que entenda porque eu também ainda não consegui entender.
Existem tantas coisas maiores do que a gente. Tantas.
Mas hoje mando todas mesmo para o inferno porque eu só te quero mais perto.
Hoje, mando todas mesmo para o inferno porque eu amo a gente.
Para o meu bem